segunda-feira, 13 de julho de 2009

Visita das águas

O GLOBO 2009
MIRIAM

LEITÃO

PANORAMA ECONOMICO


• Perdi o voo do colhereiro. Por um segundo.
Cochilei na canoa que descia o Rio Negro. Aquele cochilo nunca ocorreria no meu cotidiano de trabalho, em que justamente àquela hora estaria na corrida para entrar ao vivo no "Bom Dia Brasil".
Esta frase, "perdi o voo do colhereiro", me persegue desde então. Eu a escrevi há quase quatro anos, numa coluna que abandonei.

Ficou nos meus arquivos,solta, no ar. Um fato, que me pareceu maior que todos,atravessou o país naquele junho de 2005 e pensei que não fazia sentido uma coluna assim tão calma.

As manhãs no Pantanal são de beleza estonteante.Nada parece haver mais
eterno que o canto e o voo dos pássaros nas matas que beiram as águas.
A beleza entorpece.
São tantos,de diferentes cores, tamanhos e sons, que os biólogos que nos acompanhavam tentavam combater nossa ignorância de forasteiros dizendo os nomes e contando novidades de cada um.
São 650, os pássaros do Pantanal.
Muitos estão apenas de passagem; a água está de passagem.
Vou me deixando acalmar por aquele espetáculo de começo do mundo.

Lieo, o barqueiro, vai por um lado do rio, depois pelo outro, escorrega em contornos e desvios de algo que não vejo.

— É preciso 1er o rio — avisa o barqueiro, aos que estranham a forma de levar o barco em curvas eventuais como numa estrada imaginária. Lê também os ares; sabe os nomes das aves.

As águas estavam começando a baixar e o rio minguava em alguns pontos, virando apenas uma flor d'água. O que não vejo, e Lieo lê, são os bancos de areia que podem encalhar a canoa. Entre tantos outros, quis ver o voo desse pássaro grande, de cores vivas e mutantes, e cujo adulto tem um bico largo e achatado como uma colher: o colhereiro. Perdi seu voo no cochilo breve, que me informou que eu estava em estado de descanso e paz naquele paraíso.

Esta é a coluna que não escrevi. Nela falaria da minha visita ao Pantanal, na Fazenda Rio Negro, da Conservação Internacional. Das conversas com biólogos apaixonados por seus animais a tal ponto que assumem suas parti-
cularidades. Um jovem especialista em morcego virou notívago, Os especialistas em mamíferos se sentiam mais poderosos.
Os protetores das onças se sentiam na escala superior de sua espécie.

No domingo, houve um evento na fazenda.
Vizinhos, pequenos produtores, os trabalhadores das fazendas próximas passaram o dia na Rio Negro. É o dia do "Onça Social". Jovens médicos e dentistas dão atendimento à população. É parte do movimento que paga pelo gado que a onça tenha eventualmente comido. Assim, os fazendeiros e pequenos proprietários, indenizados, se comprometem a não matar a onça. Conheci muita gente interessante naquele "Onça Social", ninguém
mais que Marina e Lucas. O casal, descendente de suíços, tinha ido morar lá para tomar conta da Fazenda Barranco Alto, da família, e criar, naquele mundo diferente, as pequenas filhas.

Marina me mandou um e-mail que ainda guardo. É do dia 1 de julho de 2005.
"Hoje acordamos para mais um dia em que a Natureza nos deixa sem palavras.
Os ipês-roxos decidiram florir em grande fartura. Na semana passada, pudemos
observar uma onça-pintada durante 30 minutos, a dez metros de distância. Desde então, Letícia (a nossa mais velha), que estava conosco no barco, está ouvindo onças por todos os lados. Ela ficou quietinha durante as duas horas que ficamos na espreita do animal. A onça apareceu três vezes e na terceira deitou, caçou moscas com a boca, deu um show de rainha da selva.
Então, caso aconteça um milagre e a situação se acalme (difícil depois de tanto escândalo), venha tirar uns dias tranquilos aqui no mato com a gente."

Essa coluna que faria foi atropelada por um escândalo tão grave que tornou aquela conversa calma sobre rio, barqueiro, onça, colhereiro, tudo, fora de tom.
Como se alguém fosse me perguntar: falar disso numa hora dessas?

O escândalo surgiu na segunda-feira, dia 6 de junho, na entrevista de Roberto Jefferson sobre o mensalão. Eu estava começando a escrever: "perdi o voo do colhereiro", quando vi o jornal. Depois vieram as CPls, os depoimentos e acareações em madrugadas intermináveis, as revelações de publicitários, banqueiros e políticos de que bancos distribuíam dinheiro vivo aos políticos nos seus caixas ou em quartos de hotel. Parecia o prenúncio de uma radical faxina nos costumes políticos, com novas práticas, reformas, punições, transparências. Abandonei a coluna pantaneira e fui analisar o escândalo. Os anos seguintes mostraram que nada mudou. Vieram outros, e outros escândalos.
O senador Jarbas Vasconcelos agora diz verdade cristalina e os políticos torcem para que tudo se acabe no carnaval.

O Pantanal continua lá.
Está cada vez mais ameaçado por produtores de carvão, pelas siderúrgicas, pelo gado e pela soja. Perde matas diariamente. Está sendo devorado por uma economia atrasada que não respeita seu valor, não acredita em sua fragilidade.
Por que foi mesmo que entendi que um escândalo de Brasília merecia mais atenção do que o voo do colhereiro, que as poucas onças que ainda passeiam por lá, que as ameaças ao Pantanal? Lá é o ponto de encontro de outros biomas. O desmatamento no cerrado e na Amazónia também ameaça suas águas visitantes.
Por que foi que abandonei a coluna que escreveria sobre o Pantanal? Sinto que perdi mais que o voo do colhereiro.

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